A cidade perversa: liberalismo e pornografia

Dany-Robert Dufour, O Comuneiro, marco de 2010

1. Sade não morreu!

Melhor ainda: ressuscitou. Que digo eu? Ressuscitou triunfalmente!

Esta é a hipótese aqui desenvolvida: vivemos hoje num mundo cada vez mais sadeano.

Mas o que é precisamente um mundo sadeano? É um mundo onde os indivíduos obedecem, antes de mais, a esta mandamento supremo: Gozai! Isto é algo que começa a entrever-se. Mas aquilo que é menos perceptível é a variedade de dimensões em que este gozo pode efectuar-se. Muitas vezes pensa-se apenas na dimensão sexual. Isso é perfeitamente compreensível na medida em que muitas práticas actuais neste domínio parecem corresponder perfeitamente e este mandamento. Bastará pensar nestes costumes que se generalizam muito rapidamente como o “Speed dating” (vulgo, rapidinha) o contacto instantâneo através das redes do tipo Aka-Aki (1), estes encontros com desenlace sexual através dos “sites” de entrevistas na Internet que têm hoje uma expansão exponencial, o consumo pornográfico em desenvolvimento constante… Sabem que pornografia, se aí incluirmos a parapornografia, se tornou uma das indústrias com maior dimensão do mundo? A indústria dos “brinquedos” sexuais, dos encontros com acenos de sexo, da prostituição e pornografia propriamente dita (2) – com esses arreios sem pés nem cabeça, esses preenchimentos de orifícios diversos, essas correntes e esses enfiamentos múltiplos, essas inversões espectaculares, essas sessões de tortura mais ou menos consentida, essas manchas de líquidos a escorrer, com ou sem manteiga, esses deboches zoológicos ou pedófilos, estas práticas exóticas como o bukkake, o ondinismo ou o fisting (3)… – gera actualmente mais de um bilião de dólares de volume de negócios por ano em todo o mundo, ou seja, mais do que as duas indústrias farol do armamento e da farmácia (4).

Mas não é tudo porque é preciso acrescentar as indústrias que, não sendo estritamente pornográficas, celebram o gozo ou o promovem. É assim que as indústrias culturais (televisão, Internet, cinema) consagradas à diversão de massa se tornaram largamente “obscenisantes”. Um inquérito conduzido em 2008 no muito concorrido Mercado Internacional do Programas de Televisão (MIPTV) que envolve todos os anos em Cannes mais de quarto biliões de euros de direitos “mostrava a ascensão potencial em todas as partes do mundo da temática sexual” em todas as emissões – novelas, talk-shows, emissões de variedades (5) … No topo dos programas encontramos, por esta ordem: o sexo, o jogo e a espiritualidade – três temáticas que podem misturar-se com a maior desenvoltura.

2.
Quer isto dizer que a dimensão sexual é a única onde pode cumprir-se o mandamento do gozo? Não, se acreditarmos nos antigos que, nesta matéria, poderão ter sido bem mais perspicazes do que nós. Eles tinham, com efeito, distinguido três libidos ou “concupiscências”: não apenas aquela que decorre da paixão dos sentidos ou da carne (a libido sentiendi) mas também a que procede da paixão de possuir sempre mais e de dominar (a libido dominandi) e finalmente a que se relaciona com a paixão de ver e de saber (a libido sciendi) (6).

A vergonha com ou sem

3.
Isto leva a pensar que se pode ter gozo não só na dimensão sexual, mas igualmente na da posse e do domínio, bem como na do saber. Todos põem em jogo o mesmo esquema; basta excitar uma destas líbidos, rejeitar todo o limite capaz de entravar esta excitação, para ser conduzido, por degraus, até ao gozo.

O estado de gozo é tão velho como o mundo. Mas a nossa diferença em relação ao Antigos é a de que, para eles, o estado de gozo não deveria ser exibido perante outros. Esta exibição era “obscena” (em latim, obscenus) que literalmente significa “sinistro, de mau augúrio”. Compreende-se porquê: porque uma pessoa pode ser apanhada, instrumentalizada no gozo a que a outra se entrega. Ademais, “obsceno” refere-se, segundo os dicionários dos académicos, ao que “não deve ser mostrado em cena”. O respeito do outro (aidos em grego e Achtung em alemão (7)) proibia a exibição do gozo de cada um. De modo que respeitar o outro era saber resistir a uma pressão demasiado forte de uma qualquer das três líbidos, se se encontrasse junto de alguém, ou pelo menos não exibir o seu gozo perante qualquer pessoa, porque a partilha do gozo compromete ao ponto de selar acordos. Dizia-se, então que quem assim procedesse agia sem vergonha.

4.
Ora, é forçoso constatar que vivemos num mundo sem vergonha. Um mundo obsceno. Sob este aspecto, os números do comércio pornográfico ou para pornográfico que acabo de mencionar constituem um sintoma inquestionável. Alguns dirão que não há aqui nada de novo, posto que (facto inegável) o comércio porno sempre existiu (8).

É verdade, mas era escondido.

Ora, hoje, a pornografia exibe-se na esfera pública como uma actividade comum, o que constitui uma notável diferença.

5.
Precisemos esta diferença. Quando o porno era escondido, ele representava um mundo à margem do mundo oficial, um mundo a que se acedia através de portas dissimuladas, fechadas ou bem guardadas, preservando o respeito. Mas desde que o porno se encontra misturado ao mundo oficial, ele faz parte integrante de um mundo novo, na medida em que foi ultrapassada a diferença entre o porno e não porno. Um mundo novo que se tornou, de algum modo, pós-pornográfico.

6.
Deveria ser criada uma espécie de ciência – poderia chamar-se uma pornologia geral – consagrada ao estudo do fenómenos obscenos, extremos que ultrapassam os limites esticados até à hybris (“desmesura”, entre os Gregos) que se instalou em todos ao domínios relativos ao sexual, à dominação ou à posse do saber e que caracteriza o mundo pós-pornográfico no qual vivemos hoje.

As três líbidos

7.
Caberia a esta ciência analisar não só as exibições sexuais correntes como também outras actividades caracterizadas pela obscenidade.

Ora, acontece que a crise de civilização (porque concerne todos os domínios: económico, financeiro, político, moral…) que abala o mundo pelos tempos que vão correndo terá contribuído largamente para os dar a conhecer. Basta pensar na prática que consistiu em atribuir ganhos indecentes, fora de todos os padrões de medida, aos dirigentes das grandes companhias que prosperaram na nossa economia de mercado sem regras.

Estas práticas são duplamente obscenas. São-no, em primeiro lugar, porque são venais. Com efeito, estes quadros dirigentes que normalmente enriqueciam legitimamente vendendo os seus produtos no mercado segundo as regras da oferta e da procura, vieram a ser comprados pelos accionistas das suas empresas para que prosseguissem objectivos não já industriais mas simplesmente financeiros. São conhecidos os três principais processos pelos quais eles foram aliciados: pela outorga de salários mirabolantes, pelo interessamento nos resultados da empresa sob forma de bónus e de stock-options, e pela atribuição de vantagens exorbitantes como as reformas douradas e outro pára-quedas do mesmo tipo (enormes indemnizações de saída da empresa, independentemente das razões, salvo o caso de desonestidade patente) (9).

Mas tais práticas são obscenas ainda uma segunda vez porque são exibidas sem qualquer forma de vergonha. Já ninguém se envergonha por receber numa semana o que um assalariado não recebe em toda a sua vida. A indecência que constitui este comportamento perante os outros homens que, esses, estão submetidos a padrões, está hoje desculpabilizada, desinibida. A crise terá, ao mesmo tempo, contribuído para a revelação deste fenómeno e para o seu agravamento: são estes homens ainda submetidos a padrões que são, desde há um ano, chamados a socorrer aqueles que já não podiam satisfazer as suas exigências exorbitantes. Foi assim que, após terem exigido a privatização dos seus ganhos, pediram e obtiveram a socialização dos seus prejuízos, com manutenção, se possível, das suas vantagens abusivas. Pudemos assistir nos Estados Unidos (mas também noutros locais) ao espectáculo de alguns patrões (GM, Ford e Chrysler) que se deslocaram a Washington para solicitar biliões de ajuda pública – em jacto privado. Quando a indecência se exibe assim sem pejo e sem vergonha estamos em presença de factos obscenos.

Finalmente, a estas duas camadas de obscenidade, pode ainda juntar-se uma terceira. Sabemos que alguns destes dirigentes de fortuna imensa foram tentados a tirar vantagem da confusão entre objectivos industriais e financeiros que definem a sua nova posição. Alguns vieram a transformar-se em autênticos escroques; bastou-lhes a realização de operações sobre as stock-options que detinham no momento em que tinham informação privilegiada sobre os programas industriais e o estado do seu avanço (10). Esta criminalidade está tão bem inventariada que se tornou necessário inventar uma nova palavra para designar aqueles que a praticam: fala-se de patrões meliantes (patrons-voyous). O termo já designava aqueles que praticavam deslocalizações selvagens (fábricas desmontadas durante a noite, etc.). Mas o âmbito da sua aplicação alargou-se, dado que hoje se aplica ao que a crise exibiu à luz do dia, a todos aqueles que, por vezes desde há muito, utilizam no mundo da grande empresa, toda uma panóplia de actos limite, ocasionalmente delituosos, a fim de gerar capitais laváveis que aproveitam directamente a pessoas físicas ou morais – termo que, neste contexto, soa um pouco falso. Pode avaliar-se pela simples leitura dos jornais: acordos e cartéis, abusos de posição dominante, dumping e vendas forçadas, delitos de iniciado e de especulação, absorção e fraccionamento de concorrentes, balanços falseados, montagem de operações financeiras ultra arriscadas, como o empréstimo em escala desproporcionada, para além das normas usuais, a pessoas que não têm meios de reembolso (caso agora famoso das subprimes) (11), “titularização” dos créditos – ou seja, a sua inclusão em pacotes em conjunto com outros títulos considerados apodrecidos – criação de hedge funds muitas vezes sediados em paraísos fiscais, permitindo a especulação em larga escala sobre a evolução de mercados de toda a ordem (moedas, matérias-primas, acções, etc.) tanto na baixa como na alta, manipulação dos preços de transferência (preço ao qual são facturadas as transacções entre sociedades do mesmo grupo multinacional para “optimizar” as contas e reduzir a base de imposição fiscal), fraude e evasão fiscal pela utilização de filiais off-shore e sociedades fantasmas instaladas em paraísos fiscais, desvio de créditos públicos e mercados viciados, corrupção e comissões ocultas, enriquecimento sem causa e abuso de bens sociais, vigilância e espionagem, chantagem e delação, violação da regulamentação em matéria de direito do trabalho e de liberdade sindical, higiene e segurança, e de pagamento de quotizações sociais, poluição do ambiente…

Tudo isto se pode juntar às burlas claras, como aquela, enorme (“o golpe do século”, como se disse, no montante de 50 biliões de dólares) de Bernie Madoff, ex-dirigente do Nasdaq, segundo mercado bolsista dos Estados Unidos, que montou aquilo que normalmente se designa como uma “pirâmide”.

Encontramo-nos aqui em presença de uma ausência de limites à libertação das paixões e das pulsões de posse e de domínio, dito de outro modo a avidez.

8.
Face a estas derivas, como agiu o poder político pós-moderno?

Antes da crise, desenvolveu uma política de redistribuição… em favor dos mais ricos – foi assim que, em 2008, fomos informados através de um relatório oficial de que, em França, várias centenas de pessoas ricas não pagaram impostos ou obtiveram uma restituição por parte do Tesouro público, enquanto o seu rendimento fiscal de referência era, em média, da ordem do milhão de euros (12). E isto foi antes da instituição do “escudo fiscal” que agravou ainda mais esta situação, com o estabelecimento de um limite da imposição fiscal aos contribuintes mais ricos de França e em vários países da Europa (13).

Durante a crise, a política pós-moderna procedeu a importantes punções de dinheiro público para o distribuir, de um modo ou de outro, ao sector privado dos negócios responsável pela crise, até ao ponto de expor os Estados a um risco de falência, depois de brutalmente convocados para salvar as empresas. Este risco não é desprezável: a Islândia, o Paquistão, a Ucrânia estavam no final de 2008 numa situação próxima da bancarrota. E grandes países, como a Itália, a Espanha, a Irlanda ou a Grécia – a lista não é exaustiva – estavam no mesmo momento numa situação pelo menos delicada. Se esta funesta perspectiva de falência, dizia-se então, viesse a concretizar-se, abrir-se-ia um período de desordens maiores (interna e externas) do qual ninguém saberia prever o desfecho. Ora, a crise era o momento sonhado para aplicar remédios estruturais rigorosos. Mas vimos apenas algumas medidas cosméticas, tomadas no meio de grande reforço de anúncios, feitos essencialmente apara acalmar as populações em cólera (alguns paraísos fiscais mais ou menos exóticos foram mostrados a dedo, mas certamente não a City londrina ou o estado de Delaware nos Estados Unidos). Quando a política pós-moderna gera algo, no dia a dia, é o adágio popular que dizia que “governar é prever” que é enterrado. Hoje, governar é evitar comprometer-se a longo prazo, é contemporizar, tomando a decisão menos susceptível de provocar ondas a curto prazo. E esperar que o encantamento da progressão contínua dos índices retome magicamente como era dantes … para que a crise e o que a provocou sejam finalmente esquecidos.

E o futuro, nestas condições? Estejamos tranquilos: a política pós-moderna prepara audaciosas reformas. Por exemplo, a mercantilização de amplos sectores da sociedade (saúde, educação, justiça, cultura, informação) e aplicando-lhe as leis “naturais” do mercado (as mesmas que se revelaram portadoras de catástrofes no domínio dos negócios de onde brotaram). É tudo? Não. Lembremos que o Presidente da República havia prometido no decurso da sua campanha eleitoral ocupar-se dos “patrões meliantes”. Promessa cumprida: ele deseja pôr em prática uma reforma instituindo a despenalização do direito dos negócios e a supressão do juiz de instrução (14). Esta intenção não visa apenas a França, pois que é toda a velha Europa iluminada que é aqui convocada. Assim, em Itália, o governo de Berlusconi decidiu em 2008 a suspensão dos processos em curso no domínio do direito dos negócios, quando as pessoas acusadas são passíveis de pena de menos de dez anos de prisão.

Franceses, italianos, ainda um esforço mais para serem democratas… O Estado, ou o que resta dele, rendeu-se à reivindicação sadeana: conceder a impunidade àqueles que cometem o que o antigo primeiro-ministro Michel Rocard, que mastiga tanto menos as suas palavras quanto mais se afastou dos negócios correntes, chamou recentemente “crimes contra a humanidade” (15).

9.
Não é o autor – filósofo suspeito de apreciar Diógenes e o seu tonel – quem diz que o mundo funciona, desde há trinta ou quarenta anos, sob o exclusivo princípio da avidez. Quem o fez foi aquele que era considerado, até há pouco, como um dos mais famosos banqueiros do século, Alan Greenspan, antigo Presidente da toda-poderosa Reserva Federal americana (Fed), geralmente designado como “o economista dos economistas” ou ainda “o Maestro”. Interrogado, no ponto mais alto da crise, pela Comissão dos Estados Unidos incumbida do controlo da acção governativa, o antigo génio da finança declarava “ter acreditado que o sentido dos seus próprios interesses, designadamente nos banqueiros, constituía a melhor protecção que se podia encontrar”. Ora, como é sabido, a ruína de uma crença salda-se, em geral, por uma enorme desorientação – o que não deixou de acontecer. À pergunta do Presidente da Comissão, “Acha que a sua visão do mundo, a sua ideologia, não era a correcta, que não funcionava?”, Greenspan respondeu: “Absolutamente, exactamente. É precisamente a razão pela qual eu estou chocado, porque já lá vão quarenta anos ou talvez mais que, de um modo evidente, isso funcionava excepcionalmente bem” (16).

10.
Apostar sobre a libertação das paixões e das pulsões de avidez não poderia deixar de conduzir a situações de acumulação excessiva.

Ora é exactamente uma situação deste tipo que Sade evoca (Sade, homem de letras e de teatro, como é sabido, inclinado a levar à cena o obsceno) nos Cento e vinte dias de Sodoma, a sua obra mais sublimemente arrepiante (17). Tudo e, em particular, o excesso se tornou logicamente possível para o banqueiro Durcet, dada a sua imensa fortuna. Só lhe faltava encontrar as modalidades da sua realização que normalmente não está ao alcance de qualquer um. Além disso, o local abrigado para onde o excesso pode ser convocado ele já o detém, é o castelo de Silling. E se não dispõe de suficiente imaginação para conceber tudo o que seria possível, e até mais, bastar-lhe-á associar-se ao duque de Blangis, o grande e feroz comandante libertino e a alguns outros “celerados”, como ele, deixando que a sua fecunda imaginação corra sem limites, para explorar sistematicamente o território das seiscentas paixões humanas recenseadas.

Note-se que “celerado” é um termo sadeano: ele designa menos o simples libertino do que quem se entrega, sem qualquer vergonha, às suas paixões e pulsões (18). Os cento e vinte dias…põem em cena um grupo de quatro celerados que organizam, dia após dia, cerimónias de excessos que se desenrolam num ambiente de luxo incrível, sustentado por uma riqueza de tal ordem que conduz a troçar da austeridade imposta às quarenta e duas vítimas encerradas no castelo para satisfazer todas as fantasias dos ditos celerados.

Hoje não há falta de Durcet imensamente ricos. Castelos de Silling também não faltam (residências sumptuosas ultra protegidas, domínios em zonas fiscais extra-territoriais, iates, etc.). Que os celerados ousem converter em gozos diversos todo o excedente que acumularam não se sabe muito: estes meios não se deixam penetrar facilmente (19). Mas é significativo que o bom cinema norte-americano (os filmes de Martin Scorcese ou David Lynch, por exemplo) excelem na encenação (por vezes complacente) destes mesmos meios onde circula muito dinheiro, ganho rapidamente, por meios eventualmente expeditos, práticas mafiosas e paramafiosas diversas e um gosto pronunciado pela prostituição e pelas práticas pornográficas.

Quanto ao restante cinema norte-americano, o cinema comercial, que constitui uma das mais poderosas indústrias culturais do mundo, produz incessantemente obras de registo sadeano, onde se convida o maior número a gozar… com o gozo sadeano da “hiper burguesia” e dos outros grupos predadores – ou a gozar por procuração.

11.
Isto pode dizer-se de outra maneira: as três líbidos podem converter-se umas nas outras (20).

12.
Teria sido necessário esperar pelo cinema norte-americano para saber isto? Não, bastaria ter lido Platão. Quando este define a terceira alma, a epithumia, sede das paixões concupiscentes relativas às necessidades naturais e sexuais (“os prazeres de Afrodite”) e a outras paixões semelhantes, ele menciona que esta alma é também grande “amiga do dinheiro”. Porquê? Muito simplesmente porque, como diz Platão, “é sobretudo por meio do dinheiro que se satisfaz este tipo de paixões” (‘A República’, Livro IX, 580e).

13.
Ou bastaria ler Karl Marx, complementado por Lacan. Em Marx aprende-se, com efeito, que da dominação social resulta um efeito, chamado Meherwert, “mais-valia”, em consequência do trabalho imposto aos proletários. Em Lacan aprende-se que esta mais-valia extorquida pelo senhor é também um fundo de reserva convertível em gozos de toda a espécie, o “mais-de-gozo” (21).

Porno, pornê, pernémi

14.
Oiço já os comentários de certos bons espíritos pouco disponíveis para ouvir o que avançamos aqui: o autor baralha tudo, as práticas pornográficas e as actividades mercantis. Ora, elas não têm uma medida comum: as práticas pornográficas só dão prazer àqueles que a ela se entregam (e nem sempre), as actividades mercantis são úteis a todos mesmo que alguns se lhes dediquem de forma delituosa. Elas não podem por isso ser qualificadas globalmente de “pornográficas”.

Vejamos, então, o que significa “pornográfico”! Em pornográfico há o grego pornê, “prostituído” e Graphe, “escrito”. E “prostituir” vem do latim prostituere, “expor em público” que é composto por pro, “em frente” e statuere, “colocar”. Porno-grafia significa, pois, escrever ou colocar diante dos olhos ou pôr em cena, aquilo que geralmente não se exibe em público. Será tudo? Ainda não, porque a mais pequena investigação etimológica demonstra que este termo provém directamente do verbo pernémi que, segundo o Bailly, se refere a tudo que respeita à compra e venda de mercadorias em geral e das pessoa em particular. Deverá, portanto, concluir-se que são as actividades de compra e venda relativas ao mundo dos negócios que são susceptíveis de ser pornográficas.

Ora, foi precisamente o caso quando os quadros dirigentes das empresas se deixaram comprar, como vimos, pelos accionistas, a partir dos anos 80, a fim de que não tivessem objectivos industriais mas financeiros. O que pode dizer-se sem disfarces correctos: foram tratados como putas pelos accionistas. Poderíamos exprimir a coisa com mais delicadeza falando da passagem do capitalismo industrial ao capitalismo financeiro que, seguro de que tudo pode ser vendido e comprado, é directamente responsável pela enorme crise actual.

Seguramente, nem todas as actividades de compra e venda são pornográficas – longe disso. Basta para tanto que elas respeitem um princípio que Kant muito claramente destacou nos seus Fundamentos da Metafísica dos Costumes, mas que já existia muito antes de ser tão claramente formulado: o princípio de dignidade. Pode formular-se assim: tudo pode comprar-se com excepção daquilo que é digno. Para Kant, com efeito, nem tudo é convertível em moeda: “Tudo pode ter ou um preço ou uma dignidade. Tudo o que tem um preço é substituível pelo seu equivalente; pelo contrário, o que não tem preço e, por isso, não tem equivalente, é o que possui uma dignidade” (22).

Desde que o princípio da dignidade deixou de ser respeitado, desde que tudo pode ser comprado – os homens, as mulheres, os valores, as opiniões, a justiça, o amor, etc. – entrámos no que os gregos chamavam pleonexia, cuja teoria consta dos Livros I e II da Republica de Platão, onde Trasímaco e depois Glaucon, o irmão de Platão, tomam a posição de defesa da avidez. A pleonexia é aquilo que se refere à vontade de possuir sempre mais e decorre da proeminência daquilo que mais repugnava aos gregos, mas virá a ser validado muito mais tarde no liberalismo de Adam Smith, sob o nome de “self-love”, “egoísmo”.

É muito interessante saber que nos espaços grego e judaico-cristão, fundamentos da nossa cultura, a pleonexia está directamente correlacionada com a porneia. Muitos exegetas dos textos gregos antigos notam, aliás, que o termo pleonexia, contém, em si mesmo, uma conotação sexual, visto que é uma das dimensões possíveis da avidez. Estamos aí, de facto, no mundo da akaqarsia (o obsceno, o impuro). Disso dá testemunho, por exemplo, esta passagem do capítulo 5.3 da Epístola de Paulo os Efesos: “Que nem a porneia (prostituição) nem nenhuma akaqarsia (obscenidade) nem pleonexia (avidez) sejam nomeadas entre vós”. Todas elas são atitudes que, segundo os versículos seguintes, exigem expiação.

Hoje são exibidas.

O dinheiro, a merda

15.
Questão espantosamente muito pouco colocada: porque razão, de entre as seiscentas paixões metodicamente exploradas nos Cento e Vinte Dias… aquelas que pertencem ao ciclo da merda e a tudo o que pode fazer-se com ela – designadamente comê-la – ocupam um lugar de tamanho relevo? Encontramos aí uma paixão tão delicada que ele move o coração, mesmo que esteja bem apertado – inclusivamente naqueles que mantêm a melhor disposição em relação a Sade. Georges Bataille, por exemplo, que escrevia em La Litérature et le Mal (1967) “ninguém, a menos que seja surdo, chega ao fim do Cent vingt Journées …sem ficar doente”. Ou Annie Le Brun que comentava assim a sua incursão do castelo de Silling: “Nunca ninguém entrou normalmente no castelo de Silling (…) Regressei doente. Após tal viagem, o mundo deixa de assemelhar-se ao que era, já não é exactamente o mesmo” (23).

E, no entanto, não há lá dentro nada de extravagante. Sade é, pelo contrário, de um completo rigor. Mas será preciso esperar por Freud para o compreender, quando ele instituiu a sua analítica da fase (tão bem designada) sádico-anal: a merda é o dinheiro (24). Nada demais. Dito de outro modo, se há muita merda nos Cento e Vinte Dias… é porque há muito dinheiro avançado por Durcet para sustentar a aventura dos seus celerados. Muito, mesmo demais. Ao ponto que ela ameaça afogar o luxo de Silling e é preciso comê-la.

16.
Deverão igualmente ter-se por pornográficos certos feitos artísticos actuais que repousam sobre a afirmação de que é impossível distinguir um objecto realmente artístico de uma merda, desde que o dejecto se venda por bom preço – regressaremos ao tema que carece de um estudo especial.

17.
Pedirei ao leitor que me conceda o benefício da dúvida se, ao ler estas páginas, começar a imaginar que o autor acaba de aderir a uma liga de virtude e a acreditar que, entusiasmado pelo proselitismo dos neófitos recentemente convertidos, entendo berrar bem alto a minha indignação. Nada disso, em relação aos factos que invoca, o autor não é, como dizia o humorista, nem a favor nem contra…bem pelo contrário…

Não hesitarei em fazer desta ligeira proposição, uma divisa válida para o presente estudo. Com efeito, ela é mais séria do que parece. O primeiro termo “não sou a favor nem contra”, pode ler-se em termos filosóficos: chama-se a isso, desde os cépticos, a époché, que designa a suspensão do juízo – e designadamente, do juízo moral. Numa palavra, não diremos aqui: “Isto está bem” ou “Isto está mal”. Dir-se-á simplesmente: eis o que está em vias de acontecer. Porque, como se verá, isso dá que pensar. Quanto ao segundo termo “bem pelo contrário” quer dizer que isso das paixões pode ser uma coisa muito bela já que elas são a vida que corre em nós. Sob condição de fazer alguma coisa delas, porque senão arriscamo-nos muito a sofrer de forma passiva as nossas paixões.

18.
Faço questão que se diga: o autor desta linhas não de encara a si mesmo como um pai do pudor. Ele comunga ainda de num velho adágio que lhe recomendava outrora um amigo (hoje um homem de teatro de renome) nos tempos em que o autor era um jovem estudante: “Um pouco de perversão”, seringava-lhe ele muitos vezes, “não pode fazer dano”. O malandro tinha toda a razão: largar o colete-de-forças moralizante não pode causar dano, pelo contrário. Mas, vejam bem: como acontece muita vez, tudo é uma questão de dosagem. Muito pouca perversão e ficamos presos nos coletes; demasiada e lá se vai o benefício dos prazeres furtados porque eles já não subvertem qualquer proibição e afirmam-se, pelo contrário, como um novo catecismo perverso.

É, em suma, de um bom uso da perversão aquilo de que aqui se trata. Com a ideia de que o bom uso está em vias de se perder, à medida em que passamos ao demasiado, ao sempre mais, até ao sem limite. Ou seja, tudo o que contribui para conferir às nossas sociedades ocidentais pós-modernas este lado obsceno, inclusive pornográfico que as caracteriza cada vez mais.

19.
Um lado pornográfico que impregna e por vezes satura as práticas e os comportamentos sociais contemporâneos.

Pense-se, desde logo, na deterioração da língua que se torna vulgar mesmo quando se toma publicamente a palavra: isto passa-se com as frases obrigatoriamente grosseiras dos “pipoles” (25) que, na sua maior parte, representam imagens de identificação, nos múltiplos talk-shows televisivos, até às derrapagens presidenciais dignas do linguajar da “caillera” (26) dos subúrbios (entre outras, o tristemente famoso “casse-toi, pauvre con!”). Não deverão retirar-se ensinamentos filosóficos consequentes do facto de que temos, em França, um presidente da Republica que se dirige a qualquer passante com um “con” na boca? Sabendo, entretanto, que a situação não é muito diferente na Itália, outro país europeu que também se supunha de alta cultura.

20.
Após a deterioração da língua, observa-se a exibição dos corpos. Normal: estes dois movimentos formam um sistema perfeito que podia chamar-se o sistema pornográfico caracterizado por esta relação: menos discurso, mais corpos.

21.
O modelo deste tipo, exibindo corpos em vias de encaixamento é o chamado porno-chic. Objectar-se-á que se trata de um género marginal. Essa não é a opinião de um dos mais respeitado fotógrafos de moda. O britânico Tim Walker que se considera uma excepção no seu ofício, declara que “toda a foto de moda anda à volta do sexo!”. O que para ele mata a magia, a magia que ele procura manter (27). Podemos ter uma boa ideia do que é o porno-chic vendo alguns anúncios para sadeanos realizados para a marca Dolce & Gabana pelo fotógrafo Steven Klein (28).

Vemos geralmente quatro ou cinco homens e mulheres, por vezes só homens ou só mulheres, muitas vezes equipados com máquinas sofisticadas, em posições de misturada que correspondem ao momento imediatamente anterior ao desenrolar da acção. Tudo se passa como se estivéssemos perante actores porno que esperam o “clap” para passar ao acto. O que é mostrado é o ponto de máxima tensão. Logo após – um além que o espectador é firmemente convidado a imaginar – passa-se ao processo de resolução da tensão. Numa outra publicidade feita para a Dolce & Gabana vê-se uma pin-up em topless, reclinada ao sol sobre a ponte de um iate que atravessa uma paisagem de sonho. Olhando com atenção percebe-se uma mancha ainda fresca de um líquido untuoso que escorre no seu busto por entre os seios. Apercebe-se também por sobre seu corpo a sombra de uma silhueta. Alguém que estava perto da dama ainda há um instante. Trata-se de uma variante: a acção acaba de ter lugar.

22.
O sistema pornográfico não se reduz ao porno-chic. Ele está no cerne de todas as pequenas narrativas quotidianas despejadas sobre as ondas hertzianas ou estampadas nas paredes da cidade. São tantas e tão usuais que mal damos por elas. Eis, no entanto, o que dizem:

– Numa delas, vêm-se as nádegas de uma mulher com esta legenda: “É sólida de rins? Verifique a solidez da sua empresa” (Verif);

– Uma outra mostra um automóvel com esta legenda: “Ele tem dinheiro, tem um carro, logo terá mulher! (Audi);

– A fotografia de uma mulher com a pele da cor do chocolate: “Você diz não, mas percebe-se sim” (Chocolate Suchard); a campanha prossegue com outros cartazes contendo esta legendas: “Procura papilas gulosas para gozar em cima de um rochedo” e “cada mordidela do estaladiço, para ser mordida sem demora”);

– Uma boneca soprável com a boca aberta: “A tua noiva vai ficar de boca escancarada” (telefone Nomad)

– Um lobo de Alsácia lambendo uma mulher nua (para o costureiro Ungaro);

– Com esta legenda: “Babette, ato-a, chicoteio-a e, por vezes, ele vai par junto das panelas” (para um molho de nata).

Objectar-se-à que se trata de “segundo grau”. É verdade. Por isso mesmo é necessário analisar o que se poderia designar por “retórica do segundo grau”.

23.
Consideremos um anúncio publicitário de uma grande companhia de telefones portáteis que pertence ao grupo TF1 e que faz o lançamento do “bloqueio da penalização por falta de pagamento da Universal Mobile”. Trata-se igualmente de “segundo grau”. Vê-se um pai e uma mãe que parecem um pouco surpresos a entrar no quarto de sua filha, uma bela loira alta e diáfana, de cerca de vinte anos, que traja com uma minúscula camisa de noite. Há rapazes que saem de toda a parte, de debaixo dos lençóis, debaixo da cama, da casa de banho… Percebe-se que um partouze monumental acaba de ter lugar e os pais perguntam a sua filha… se os seus amigos ficam para o jantar. Aparentam um semblante feliz porque a sua filha, graças ao contrato telefónico que lhe permitiu ligar a todos os seus amigos, não rebenta a sua licença, o que permite que seja ela a rebentar de gozo. A mensagem comenta “com a despenalização UM, o melhor plano para os jovens, podes rebentar, sem seres penalizada!” (29).

Por muito “segundo grau” que seja, este anúncio contém uma mensagem pedagógica clara, muito de “primeiro grau”: é manifesto que a transmissão já não se faz no sentido antigo, de pais para filhos. O sentido é invertido: a transmissão deve fazer-se da criança para os pais. Mas o problema é que os pais, maus alunos, não atingem as práticas libertadoras da sua linda filha, e não vêem nada, não querem saber nada e não entendem nada daquilo que vêem. Numa palavra, pobres neuróticos, completamente tapados de que o anúncio suavemente de ri.

Basta ler a Philosophie dans le boudoir para entender que se trata exactamente da mesma posição tomada pela, bem designada, Eugénie que, já percebendo tudo num piscar de olhos, toma a iniciativa de ministrar uma lição a sua mãe, Mme. de Mistival. O que aqui se manifesta é já a inversão da relação pedagógica. O que indica esta inversão é que a geração precedente foi mandada de férias, libertada do pretenso dever educativo de que se prevalecia. E se deve haver educação, ela terá que inverter o sentido porque é uma educação ao gozo.

Muitas campanhas de publicidade actuais, muito de “segundo grau”, funcionam na base desta inversão. Foi o caso da campanha de 2007 do Canal Jeune, sob o slogan: “As vossas crianças valem mais do isto” (30). “Isto” referia-se aos pais e aos avós a fazer de idiotas, na sua vã tentativa de divertir as crianças metendo, por exemplo, aipo nas orelhas ou salsa no nariz, quando, evidentemente, bastava plantá-las em frente de uma televisão ligada ao Canal Jeune para que elas rejubilassem (31).

24.
Todos estes anúncios “libertados” constituem uma encenação do mandamento supremo: Gozai! Esta permanente injunção ao gozo confirma o fim das grandes narrativas teológicas ou políticas que, na época moderna, contavam uma história de uma redenção colectiva (como o cristianismo) ou de emancipação (como o marxismo) (32). Aquando da passagem à pós-modernidade, a queda das grandes narrativas, foi de algum modo contrabalançada pelo pulular das pequenas narrativas. Deve entender-se por isso tanto a ascensão, em todos o domínios, das pequenas narrativas egoístas que desembocam sempre na exibição dos seus pequenos gozos, como a proliferação destas pequenas narrativas publicitárias que exaltam incessantemente a mercadoria e propõem este ou aquele serviço ou objecto manufacturado que se supõe satisfazer todas a nossas apetências pulsionais, sejam elas quais forem.

A pós-modernidade caracteriza-se, portanto – e esse é um dos seus traços decisivos – pelo facto de que já não temos que nos confrentar com uma palavra de proibição, suportada pelas grandes narrativas, mas sim com uma palavra de incitamento, proferida pelas pequenas narrativas, uma palavra que nunca para de dizer: “Gozai!” Ora, estas pequenas narrativas que infestam largamente o espaço privado (a rádio, a televisão e o telefone) e o espaço público (os cartazes e os vídeos nas parede das cidades) vão colher uma boa parte da sua inspiração, como acabamos de verificar, na pornografia. Este espectáculo adquiriu direito de cidade – é bem caso para o dizer, pois que estas imagens cobrem hoje quase por completo as paredes das cidades. Já estamos de tal modo habituados a esta exibição permanente que quase não damos por ela, embora nunca deixe de lá estar. Para a notar seria preciso mandar vir um Grego da época clássica ou até um homem comum dos começos do século XX e darmo-nos conta do modo como ficaria enrubescido ao aperceber-se da vergonha que é ter que assistir a isto.

Elementos de pornocracia

25.
Quando este funcionamento pornográfico atinge o Estado, podemos falar de pornocracia. A pornocracia é um regime em que o corpo do rei (e o corpo da rainha) é exibido no seu funcionamento pulsional. Durante algum tempo esteve limitado às aventuras do príncipe e da princesa de Mónaco e das suas filhas, mas veio a infiltrar-se na Republica francesa.

Comecemos pelo melhor, o corpo da rainha. Aquando do recasamento do nosso presidente, recebi, por e-mail, provavelmente como uma boa parte dos franceses, um “panorama” de natureza muito porno-chic. Exibia uma sucessão de imagens representando aquela que iria ser a nova primeira-dama de França. Encontravam-se aí cerca de umas trinta fotos de anúncios publicitários onde a ex-top-model posava nua em todas as posições imagináveis. Entre elas intercalavam-se uma vintena de fotos onde ela aparecia com o seu amante do momento – certo actor conhecido, tal cantor famoso – pouco importa, desde que pertencesse ao belo mundo do jet-set ou dos meios políticos.

O sempre saltitante Jack Lang que, como é sabido, representa a vanguarda cultural, não conseguiu reter um grito de entusiasmo quando soube do idílio entre a cúpula do poder e Carla Bruni e disse: “Carla Bruni, é a esquerda no vértice do Estado” (Le Monde de 21 de Dezembro de 2007). Todo este entusiasmo provinha sobretudo do facto de ela, um dia, ao que parece, ter articulado uma palavra em favor do casamento homossexual. Se existir ainda um leitor que associe a esquerda a outras imagens – gloriosas, como a do resistente mítico Che Guevara, lendárias como a do insurgido nas barricadas de Paris, que estão hoje um pouco fora de moda, ou a do valoroso homem de ferro com um generoso fardo de palha, conduzindo enorme tractor no kolkhose – é dever do autor lembrar-lhe que ele sofre de um sério atraso. Porque o que se vê nessas imagens que circularam um pouco por toda a parte em França, é manifestamente uma pessoa libertada, no sentido em que participa, se não numa libertação cultural, pelo menos num liberalismo cultural…à Jack Lang, o homem das tecno-paradas e outras ego-paradas – numa palavra, como dizia, o saudoso Philippe Muray, panfletário sem par e, no entanto, fino analista, aí onde “se goza como um grossista”.

Seja como for, é seguro que já não vivemos no conservadorismo “velha França”. Alguma coisa se passou. Ou, então, é preciso acreditar que Yvonne de Gaulle poderia apresentar-se nesse preparo! É aí que os tristes moralistas e os alegres estetas poderão entender-se, agradecendo à Tia Yvonne o facto de os ter poupado a este espectáculo. Mas parece que o tempo de contenção já lá vai. Os rapazes e raparigas da velha França berlusconizaram-se. A Generala partiu e foi substituída por aquilo que, no meio popular da minha juventude, se chamava “uma galinha de luxo”, saída directamente das cenas do Dolce & Gabana. Numa palavra, já não fazemos a mesma ideia da primeira-dama de França. O que representa um inegável progresso. Direi mesmo que a coisa embalou. Basta pensar o que representava a ex-, isto é, a primeira primeira-dama de França deste quinquenato e a nova, a segunda primeira. A diferença salta aos olhos: é parecido, mas muito melhor. É parecido porque Cécille já tinha indicado a tendência: já se relacionava com a marca concorrente da Dolce & Gabana, Prada. Mas é melhor porque a segunda primeira-dama exibe-se ainda mais. É certo que a vemos de quando em vez vestida como a rainha de Inglaterra, mas, graças a Deus, ainda nos resta uma colecção de imagens suas que ela continua a alimentar, exibindo as sua longas pernas nas “pochetes” dos seus DVDs. Há nisso um enorme mérito. Com efeito, ela destaca bem o princípio central que se enuncia numa só palavra: Gozai!

26.
Tudo isto mostra que vai longe o tempo em que as senhoras da alta deviam absolutamente deter um salão literário. Do salão passámos à alcova. Trata-se de uma deslocação topográfica que indica uma mudança filosófica importante. Porquê? Porque ela indica que passou o tempo em que a burguesia, tirando partido do sobre-trabalho imposto aos proletários (a “mais-valia” para Marx) propunha, em compensação desta punção, ocupar-se da literatura e das artes. O que poderia enunciar-se mais ou menos assim: “Trabalhai, rapazes, descei até ao fundo das minas, fundi o vosso corpo físico no grande corpo produtivo das fábricas. Durante esse tempo, nós ocupar-nos-emos das coisas do espírito e creiam que não é nada fácil. Nem suspeitam da sorte que tendes em não ter que pensar. De facto, bem gostaríamos de estar no vosso lugar” (33). Em suma, havia uma espécie de contrato social entre o burguês e o proletário, o qual devia felicitar-se por não ter compromissos artísticos a assumir, isto é, nada ter a perder (“a não ser as suas cadeias”, como Marx, ainda ele, disse tão bem), enquanto o burguês tinha a seu cargo a arte. E a arte é um fardo.

Hoje estamos perante um novo contrato que alinha, de um lado, a hiper-burguesia (34) e, do outro, já não o produtor mas o consumidor proletarizado (35). O que o hiperburguês exorta já não é “Trabalha, enquanto eu me ocupo das artes”. Em vez disso, será: “Consome e observa bem como eu gozo; depois tenta fazer o mesmo na medida dos teus meios!”.

Compreendemos, pois, pelo menos asim o espero, que olhar, melhor dito, “fisgar” Carla na alcova, dá enormemente que pensar. E se reflectirmos um instante, há consequências políticas a tirar do facto de que a mulher do chefe de Estado, mesmo que involuntariamente, mostre o rabo e mande passear a vergonha, o pudor, o respeito, o aïdos, como diziam os gregos, isto é, tudo o que implica uma retenção perante o outro (cf. o Protágoras de Platão 320.322d). Zeus não brincava com o assunto quando, a propósito do aïdos, ordenou expressamente a Hermes: “Institui, em meu nome, a seguinte lei: que seja morto aquele que não é capaz de participar no respeito e na justiça”, sabendo que o respeito é, neste mesmo texto, desde logo, vestir-se.

Portanto, se a mulher do chefe de Estado persiste em despir-se, só pode ser para desafiar lei de Zeus e instaurar una nova religião, fundada já não sobre o aïdos mas sobre a exibição pornográfica como tal. Então, tratar-se-á de libertar o bom povo para o iniciar no aroma de Dolce & Gabana, evidentemente, mostrando o que poderia, também para ele, abrir de par em par as portas do progresso em matéria de satisfação dos seus apetites pulsionais, se ele for suficientemente ousado. Ou seja, abandonar o seu estatuto de neurótico e entregar-se audaciosamente à perversão, em todo o desrespeito, como garantia do progresso.

27.
Fisgar o corpo da rainha, está bem. Mas não é suficiente. É preciso também observar o corpo do rei. Aposto, com efeito, que poderemos iniciar uma analítica quase completa do poder observando-o apenas, com muito cuidado. Noutra ocasião, instruí-me muito ao considerar, na senda de Louis Marin, o corpo em glória de Louis o Grande, pintado em 1701 por Hyacinthe Rigaud: Louis XIV en costume de sacre (36). O quadro exibe um espectáculo fascinante: vemos um tal Louis Capet transformar-se em Roi-Soleil, por efeito de uma simples miragem auto-fundadora, através bastantes plumas, calças entufadas, vestes de seda, peruca, meias brancas, veludo azul, púrpuras e ornamentos antigos dispostos artisticamente pelo pintor. Este “estádio do espelho real” (37) era suficiente para concitar o olhar dos súbditos na confirmação do Grande Sujeito que extrai a autoridade de si mesmo, de tal forma que eles se colocavam, do mesmo golpe, como submetidos a essa autoridade.

É certo que, entretanto, o rei morreu. Realmente, o grande Sujeito encolheu um pouco. Mas sou da opinião de que há ainda muito que aprender, hoje, sobre o poder, observando o corpo do reizinho actual. Bastará ter em conta as pulsões que incessantemente o agitam e que ele não consegue controlar. Esta permanente agitação desagrada a muita gente mas não é de excluir que a exibição constante da sua veemência pulsional acabe por agradar e permitir inclusivamente aos liberais (de direita como de esquerda) “ganhar a batalha ideológica” – aquela que asseguraria a vitória a longo prazo do liberalismo (38). A vitória nesta batalha não pode conceber-se sem que se caminhe no sentido deste misto de democracia a que chamei aqui a pornocracia.

Poderíamos defini-la assim: a pornocracia é a forma de governância mais bem adaptada à era ultraliberal, na medida em que ela utiliza o Estado residual para disseminar e propagar o novo mandamento: “Gozai!”.

Lições de perversão

28.
Para se tornar perene, esta pornocracia supõe, com efeito, a difusão permanente de verdadeiras lições de perversão, isto é, a exibição pública de comportamentos “culturais”, políticos, económicos ou artísticos pornoisantes.

29.
Não deve deduzir-se da propagação destas lições de perversão que todos aqueles que as sofrem quotidianamente se tornem necessariamente perversos. É inclusivamente um dos traços distintivos da nossa época pós-moderna: a Cidade pode ser perversa sem que todos os indivíduos o sejam, longe disso.

É, no entanto, claro que banhar-se numa cultura perversa não deixa de ter consequências sobre os indivíduos. Em primeiro lugar, porque uma cidade que se tornou perversa não pode deixar de conter uma “selecção natural” dos mais aptos à defesa do seu ideal. Em segundo lugar, porque a generalidade dos indivíduos, mesmo não perversos, são constantemente instados a adoptar comportamentos perversos.

30.
Ao lado dos autênticos perversos deve, portanto, supor-se a persistência dos neuróticos – ou seja, se acompanharmos Freud, homens perfeitamente comuns, “normais” – com comportamentos perversos.

31.
Estas lições de perversão são muitas vezes assumidas por indústrias (culturais) muito poderosas. Um poder de tal magnitude que é susceptível de criar um verdadeiro círculo vicioso (é literalmente caso de o dizer): quanto mais vezes as cenas pornoisantes são difundidas mais facilmente se tornarão modelos de comportamento e quanto mais se espalharem, mais intensamente contribuirão para a criação de uma procura crescente, que estas indústrias se apressarão a satisfazer.

32.
Vejamos como este verdadeiro sistema de perversão pôde instituir-se.

Em primeiro lugar, pela exibição ostensiva de discursos desinibidos (“sem tabus”). É óbvio que estes discursos – com a sua potência pragmática, utilitarista e realista – fascinam. Fascinam tanto como o sexo mostrado cruamente, destituído como tal de qualquer valor que o reenvie a um qualquer além simbólico, a uma cultura saturada de princípios morais, canons estéticos, comportamentos éticos, ideais de verdade – tudo isso deposto em dogmas que supõem uma anterioridade que faz autoridade e alteridade. Tal como este sexo cruamente exibido, “liberto” de toda a contenção cultural e pronto a usar a todo o momento, estes discurso desinibidos só valem no preciso momento em que são pronunciados. Visam uma eficácia comunicacional imediata, isto é, um efeito perlucotório onde a palavra deixa de ser um dito associado a outros dizeres que sinalizam a verdade (o que reenvia ao logos grego) para passar a ser um simples acto ad hoc que visa apenas a conquista de uma posição entre aqueles que interagem apenas como actores, do que dá testemunha a viragem pragmática actual nas ciências humanas e sociais e na filosofia. O termo, de resto, é muito interessante visto que: 1º supõe que os indivíduos desempenham sempre um papel que pode ser tanto mais importante quanto mais se dispõem a adaptar-se às circunstâncias e a tirar o melhor partido das forças em jogo, sem qualquer preocupação com princípios ou valores; 2º evoca a acção, como tal, como algo de pronto e eficaz (actor em latim é “aquele que age”). “Tornai-vos como eu, actor da vossa própria vida”, é exactamente a mensagem transmitida por todos os discursos desinibidos. Como este género de lisonja é muitas vezes eficaz, as lições vão fazendo o seu caminho.

33.
Presumo, portanto, que estes discursos funcionem por fascínio sobre o maior número, na medida em que fustigam as atitudes reflectidas, e lisonjeiam as pulsões de omnipotência – mesmo quando esta é completamente imaginária.

Mas é ainda mais notável que estas lições de perversão funcionam também quando têm origem numa divulgação indignada ou quando partem de uma denúncia, por exemplo, na imprensa, de actos desavergonhados como aqueles que acabo de evocar. O que coloca hoje a imprensa numa posição delicada: ou ela não fala destas passagens ao acto pornográficas que saturam o espaço público e trai a sua missão de informar, ou fala, mas coloca-se cada vez mais na posição daqueles famosos jornalistas especializados no escândalo, adulados pelas nossas avós, que não tinham outros prazeres que não fossem o de gozar da sua indignação perante a narração pormenorizada de bebés despedaçados, mulheres selvagemmente violadas, homens ferozmente castrados – e por aí fora. Bastaria algumas poucas observações para mostrar que o conteúdo dos jornais televisivos de hoje evoca, lembra ou corresponde muito bem ao de certos jornais de escândalos de outrora, com tanto êxito como o antigo Detective. Se julgo severamente estes processos é porque, a meu ver, a indignação não constitui um entrave ao desenvolvimento destas lições de perversão, mas muito pelo contrário. Com efeito, apenas se procura uma denúncia ou outra, a retalho, na medida em que se trata sempre da falha de uma pessoa ou outra e nunca do quadro simbólico, político, jurídico e moral que produz estes actos.

34.
Se os discursos de reivindicação ou de denúncia contribuem com tanta eficiência para a propagação desta lições de perversão junto do maior número, é que, uns e outros, pressupõem o mesmo princípio liberal fundamental: o do individualismo metodológico. Entende-se geralmente assim a doutrina que pretende: 1º que não existe nenhuma outra realidade para além dos indivíduos; 2º que todo o conjunto social não é mais do que o resultado da acção dos indivíduos; e 3º que os indivíduos visam sempre nas suas relações com os outros a maximização dos seus ganhos.

Os actos que tenho vindo a referir podem parecer, perturbadores, repreensíveis, ou até inaceitáveis para a maior parte das pessoas (isto é, aos bons neuróticos) mas não deixam, porém, de lhes indicar um método para se comportarem neste mundo. Com efeito, estes actos repetem incessantemente a cada indivíduo que, se os seus congéneres funcionam deste modo, seria ridículo adoptar um funcionamento diferente, altruísta, por exemplo, na medida em que se arrisca então a ser o único a agir assim, condenando-se, pela sua própria obstinação ou cegueira, a transformar-se em presa dos outros.

Esta parece-me constituir a melhor explicação do recuo verificado, desde Georges Orwell, da common decency (“decência comum”), este “senso moral inato” que se supõe incitar as pessoas simples a agir correctamente (39). Podemos dizê-lo de outra maneira: a common decency não constitui uma barreira suficientemente sólida para travar as lições de perversão porque os “decentes comuns” são intimados a adoptar um comportamento que não seria necessariamente o seu.

35.
Basta mais um passo para que surja, diante dos olhos do indivíduo assim pervertido, o princípio que rege o espaço em que deve viver: a democracia não é mais do que o lugar em que cada um se encontra em situação de concorrência com todos os outros. O alter ego já não é compreendido como condição da sua realização própria, mas como uma causa permanente de empecilho, de insatisfação, de complicação ou mesmo de desapossamento. Para obviar a esta fatalidade convirá então:

1) Afirmar sempre o seu direito contra o outro – o que conduz à regra nº 1 que se impõe a todo o indivíduo que viva no quadro democrático pós-moderno: não há nenhum limite àquilo a que tenho direito.

2) Procurar um enraizamento identitário inquebrantável – de onde se deduz a regra nº 2: devo absolutamente provar que sou essencialmente diferente do outro e que ele não pode dar-me nenhum contributo.

3) Defender-me sempre contra o domínio real ou suposto do outro – o queleva à regra nº 3: eu sou sempre, realmente ou potencialmente, uma vítima do outro.

O génio de Sade foi o de ter compreendido que isto tinha que acontecer se os seus princípios liberais fundados sobre o egoísmo fossem levados à sua conclusão lógica e o de ter sabido, antes mesmo que isso viesse a acontecer realmente, fazer a síntese destas três regras, definindo uma nova máxima, uma meta-máxima, poderíamos dizê-lo, enunciável assim: para que eu não seja vítima do outro, para que tenha todos os direitos, e assim defina a minha irredutível identidade, é necessário e suficiente que o outro seja a minha vítima.

Tu és a minha vítima

36.
É necessário e suficiente que o outro seja a minha vítima. Esta meta-máxima sadeana é hoje partilhada por diferentes meios sociais predadores, quer estejam integrados no sistema ou pertençam à margem, ou façam parte do patronato-meliante ou da canalha política ou da pequena delinquência. Os jovens selvagens dos subúrbios têm o mérito de o assumir sem ambiguidades quando dizem dos jovens que acabam barbaramente de aterrorizar e despojar de tudo: “Vocês são as nossas vítimas!” (40). Eles desconhecem que empregam um termo plenamente vigente em Sade, como, por exemplo, Madame Saint-Ange se dirigia à mãe de Eugénie, Madame de Mistival, dizendo-lhe: “Escuta, minha puta! Vou finalmente informar-te!…Tu és para nós uma vítima enviada pelo teu próprio marido” (La Philosophie dans le boudoir, 7º dialogue).

Os três grupos que acabo de mencionar são, pois, muito menos antagonistas do que possa parecer. Opõem-se, mas porque partilham a mesma regra sadeana, também se assemelham. Não surpreende, portanto, que se veja tantas vezes, quem pretende liquidar a delinquência agir ou reagir precisamente como um delinquente.

37.
A actual incitação pornográfica é múltipla: anúncios, canções, músicas, artes de mostração das pulsões, exibições de atitudes políticas ou económicas obscenas, programas de televisão berlusconisantes, informação permanente sobre a vida sexual dos “pipoles” (41), educação sexual via Internet, discurso das ciências sobre o sexo, discurso da ciência higienista liberal eventualmente coroado por uma Festa do Orgasmo (data criada recentemente no Brasil) … estas lições de perversão, incessantemente destiladas, visam criar uma espécie de reportório de gestos sexuais de base que se supõe serem comuns a todas as pessoas “normais”. Daí resulta uma cruzada pornográfica que tem por alvo um público tanto mais alargado quanto vai alternando diferentes estilos de linguagem (grosseiro, escorreito, de moda, humorístico, político, científico…). É assim que, em nome de uma libertação sexual libertária, se constrói uma normatividade onde o colectivo interfere constantemente no privado. A partir do momento em que a pornografia se torna pública e colectiva, todo o sujeito é firmemente instado a praticá-la como se fosse um exercício de ginástica recomendável para a saúde. Como se toda a sexualidade supusesse um orgasmo, como se todo o prazer supusesse uma ejaculação, de preferência facial e por aí fora. É esquecer que a verdadeira liberdade em matéria sexual foi sempre a de poder inventar ou de acreditar que se podia inventar a sua própria pornografia com ou sem parceiros. Se Freud nos ensinou alguma coisa foi que a pulsão pode fazer os caminhos mais inesperados para atingir os seus fins – essa é a razão pela qual a sexualidade humana é fundamentalmente incodificável. O incitamento pornográfico de massa, que corresponde a uma intrusão dos poderes com a sua normatividade pretensamente “libertária” no encontro sexual privado, só pode advir de uma vontade de codificar e formatar a pulsão em vista da sua exploração em larga escala.

É exactamente por isso que o gozo jamais deve ser exibido; porque o gozo dos outros interfere com a minha liberdade absoluta neste domínio. A actual banalização da pornografia está em vias de produzir tanto ou mais sofrimento do que a sua reprovação em épocas anteriores.

38.
De onde é que resulta este mundo obsceno em que vivemos? Será que apareceu, como se tem acreditado muitas vezes no decurso dos últimos quarenta anos, marcados pela viragem pós-moderna na cultura, com a ascensão em força do ultraliberalismo na economia? Não. Ele vem de muito mais longe. Tentarei mostrar que ele vem directamente de uma postura filosófica e moral tomada na viragem de 1700 que apostou impudente e imprudentemente sobre um só princípio – o do egoísmo, do self-love de que o pensamento liberal fez o seu credo central, apresentando-o paradoxalmente como virtuoso. Sade foi o único que compreendeu até onde isso poderia conduzir. Nesta medida, podemos dizer que o sadismo, surgido no final do século XVIII, é que diz a verdade da doutrina liberal que havia aparecido no início do mesmo século. Esse foi o génio do Divino Marquês: ele foi o primeiro a tirar as consequências e desvendar todas as implicações do princípio liberal assente no egoísmo que se lançava, então, à conquista do mundo.

Esta colocação em relação directa do liberalismo e do sadismo é uma hipótese que, segundo penso, nunca foi encarada com seriedade. No entanto, muito se escreveu sobre Sade depois que foi progressivamente saindo, desde os anos 1950, do inferno das bibliotecas onde permanecia encerrado (42). Designadamente, foi devidamente destacado o grande conhecimento que Sade detinha da filosofia do seu tempo. Mas sem todavia se atentar especialmente a possível coincidência entre a filosofia de Sade e a filosofia liberal. A hipótese de uma ligação estreita entre o sadismo e o liberalismo jamais foi feita pelos actuais apreciadores de um Sade simpático que se limitam a lastimar que o pobre Marquês tenha passado vinte e sete anos da sua vida na prisão por uns pequenos delitos menores e por causa de alguns rabos benditos e moralizantes desse tempo, dos quais a nossa época felizmente já se livrou (43). A título de delitos menores, retém-se sobretudo o elogio sadeano da sodomia que hoje é de bom-tom celebrar, esquecendo intencionalmente tudo o resto: na sua vida real, alguns ataques e agressões a outrem, na sua obra, a apologia do incesto, da tortura, e do assassinato, sem contar com outros pormenores da mesma ordem. Aqueles que defendem esta posição desconhecem, pura e simplesmente, a fantástica negatividade e radicalidade de Sade.

Mas a hipótese que relaciona o sadismo com o liberalismo tão pouco foi avançada por aqueles que viram o sadismo como o súbito surgimento de “um bloco de abismo” (44) que aflorou subitamente após o afundamento do Antigo Regime e o começo balbuciante de um novo mundo, a ambiguidade fundamental das paixões humanas que podem ir até ao ponto de gozar do que há de desumano nelas. Uma exploração sistemática das paixões tornada possível por um pensamento que, pela primeira vez, se quis inteiramente disponível para transcrever a inscrição física de um corpo incandescente em virtude do encarceramento. É uma tese, evidentemente, muito mais séria do que a primeira, mas esquece que o surgimento de Sade, no final do século XVIII, deixa de aparecer como algo de “súbito”, quando o referimos ao aparecimento do pensamento liberal do início do mesmo século, uma vez que este pensamento, ao desviar o curso da metafísica ocidental, tinha tomado a iniciativa de apostar forte na libertação das paixões – será o que iremos mostrar retomando os textos fundamentais do pensamento liberal. Proporemos, portanto, uma hipótese nova que pode enunciar-se assim: quanto mais o mundo se torna liberal, mais se torna – e logicamente não pode deixar de se tornar – sadeano.

Não quero apenas dizer que o libertino é o primo direito do liberal. Isso é algo que sabemos desde o século XVIII: da liberdade que se afirma cada um sabe doravante que pode fazer dela um uso político ou um uso pessoal, incluindo a gestão dos seus prazeres. Eu pretendo dizer mais: o liberalismo, fundado como tal na liberação das paixões, só pode florescer como sadismo.

39.
Por ocasião de um encontro com Jean-Claude Micheá e Jean-Pierre Lebrun em Maio de 2008, no teatro dos Doms d’Avignon, a propósito dos nossos trabalhos respectivos, o nome de Sade apareceu naturalmente na discussão. Chegamos a dizer-nos que se, por milagre, conseguíssemos fazer sair da sua hibernação os grandes pensadores do século XVIII que apostaram no princípio egoísta (Bernard de Mandeville, Adam Smith, Benjamin Constant, Sade…) de forma a que acordassem bruscamente do seu longo sono egótico, eles ficariam decerto muito surpreendidos com o mundo actual e assustados com os efeitos e consequências dos deus discursos. A maior parte contava ainda com uma certa dose de altruísmo, mesmo se de um modo um pouco contrariado mas efectivo. Bastará pensar em Adam Smith que, no momento em que fazia publicar a Richesse des nations (1776), que apostava numa ética egoísta, reeditava a sua Théorie des sentiments moraux, onde se dedicava a uma defesa e ilustração do princípio altruísta. Todos eles ficariam consternados com o triunfo absoluto do egoísmo e a derrota do altruísmo. Todos, com uma excepção: Sade. Na medida em que ele tinha visto perfeitamente e até antecipado onde poderia conduzir a introdução do princípio egoísta, que, como ele indica incessantemente nos seus textos, iria bem depressa impor-se em detrimento de qualquer outro.

De todos os liberais e libertinos do século XVIII, Sade teria sido provavelmente o único a ver na nossa época a confirmação do seu génio.

(*) Dany-Robert Dufour (n. 1947) é um filósofo francês, professor de Ciências da Educação na Universidade de Paris VIII e director de programa no Collège international de philosophie. Tem já publicada uma extensa bibliografia – p. ex., ultimamente, On achève bien les hommes (2005), Le divin marché (2007) – situando-se o seu trabalho na área dos processos simbólicos, na junção entre a filosofia da linguagem, a psicanálise e a filosofia política. O texto que aqui publicamos é o prólogo ao seu último livro ‘La cité perverse’, Denöel, Paris, 2009. Tradução de João Esteves da Silva.

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NOTAS:

(1) Quando dois membros da rede Aka-Aki – que deram informação do seu perfil indicando os seus gostos (entre outros, sexuais) – se cruzam dentro de um raio de acção suficientemente próximo, os seus telefones móveis começam a tocar. Cada um dos parceiros pode assim saber onde o outro se encontra. O poder da Aka-Aki parece ilimitado porque ela recenseia todos os aparelhos que emitem um sinal bluetooth que hoje constitui a norma dos telefones móveis, dos computadores, das impressoras, dos GPS dos automóveis… O reino animal já conhecia a feromonas químicas; os homens estão hoje dotados de feromonas electrónicas (lembremos que as feromonas são substâncias químicas emitidas pela maior parte dos animais que transmitem, muitas vezes, pelo olfacto, informações entre indivíduos da mesma espécie, úteis designadamente na atracção sexual).

(2) Pode consultar-se a definição rigorosa destas actividades no excelente relatório sobre as indústrias do sexo redigido por Marianne Eriksson, deputada da “esquerda unitária europeia” no Parlamento Europeu, em linha no “site” do Parlamento.

(3) Sejamos precisos: para além dos clássicos partouzes e gang bangs, com as usuais penetrações simples, duplas, triplas, ou mesmo mais, existe o bukkake onde um grupo de homens ejacula, à vez, para cima de uma pessoa (homem ou mulher), preferentemente na cara. Há também uma variante, o gokkun, que consiste na recolha do esperma num recipiente a fim de ser em seguida bebido. O ondinismo tem que ver com a urina que, ou se bebe directamente na fonte, ou se deixa cair, de preferência discretamente se for em público, a fim de deixar que as vestes fiquem impregnadas. O fisting finalmente consiste na penetração da vagina ou o recto da sua parceira (ou parceiro) com o punho.

(4) Estes números não são fáceis de obter por duas razões: 1º Estas actividades, embora bastante disseminadas, continuam a ser ocultadas; 2º Envolvem um conjunto de redes ilegais ou para-legais. O trabalho de quantificação mais preciso é o do sociólogo e antropólogo canadiano Richard Poulain (Universidade de Ottawa) de onde foi retirado o número avançado por mim (cf. La Mondialisation des industries du Sexe: Prostitution, Pornographie, traite de femmes et des enfants, L’Interligne, Ottawa, 2004).

(5) Vide a investigação de Guy Dutheil intitulada «Jeux, Sexe et spiritualité dominent le marché des programmes», in Le Monde de 24 de Abril de 2008.

(6) Santo Agostinho desenvolve esta análise no Livro X das Confissões. Ela decorre em linha recta das três concupiscências de que falava o apóstolo João: o desejo dos olhos, o desejo da carne e o orgulho da vida (Primeira Epístola de João, 2: 16).

(7) Há em Kant mais do que trezentas ocorrências desta palavra, a maioria das quais na Critica da Razão Prática e nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes.

(8) O que mostrava perfeitamente a bela exposição montada no Museu do Louvre em 2000 por Régis Michel (comissário): Posséder et Détruire – stratégies sexuelles de l’art d’Occident.

(9) O montante total das remunerações dos quarenta mais bem pagos patrões franceses elevou-se a 161 milhões de euros em 2007 (o que significa 58% de aumento num só ano, representando uma média de 4 milhões por cabeça, compreendidas todas as formas de remuneração, segundo o jornal L’Expansion de terça-feira 27 de Maio de 2008).

(10) Bastará citar um exemplo que nem é dos mais probatórios porque são inúmeros: dezasseis dirigentes do grupo EADS, entre os quais o antigo presidente Noël Forgeard foram acusados de delito de “inside information” por terem vendido, em 2005 e 2006, as suas stock-options no momento em que dispunham de informação privilegiada sobre as perspectivas financeiras pessimistas do grupo e sobre o atraso dos programas A 380 e A 350. O caso não está encerrado, mas o processo surge como emblemático no que concerne aos costumes financeiros dos círculos dirigentes.

(11) As regras clássicas impunham aos Bancos a detenção de um dólar de capital por cada 12 dólares de crédito. A finança do mercado desregulado permitiu aos seus autores, através de processos diversos, distribuir até 32 dólares de crédito de por um dólar de capital.

(12) Extracto do relatório de 5 de Junho de 2008 da Comissão de Finanças, de Economia Geral e do Plano da Assembleia Nacional (contendo o cunho da divisa “Liberté – Egalité – Fraternité).

(13) Estas políticas fiscais são inspiradas pela escola de pensamento económico liberal ou ultra-liberal, favorecendo a “economia da oferta” contra a “economia da procura” de obediência keynesiana.

(14) Cf. o relatório da comissão presidida pelo alto magistrado Jean Marie Cólon, entregue no dia 20 de Fevereiro de 2008 à ministra da Justiça de então, Me. Rachida Dati. E o pré-relatório sobre a reforma da fase preparatória do processo penal, estabelecido pelo alto magistrado Philippe Léger, entregue na segunda-feira 9 de Março de 2009. Este relatório de etapa inclui como medida farol a supressão do juiz de instrução, em conformidade com os desejos de Nicolas Sarkozy expressos no dia 7 de Janeiro perante o Supremo Tribunal. O juiz Van Ruymbeke, cuja independência lhe permitiu instruir muito processos de negócios, não se enganou: “A supressão do juiz de instrução é o toque de finados do direito dos negócios (…) Amanhã, se for suprimido o juiz de instrução que é um magistrado independente, estes casos serão atribuídos a um juiz que depende do poder. (…) No sistema que é preconizado pelo Presidente da República, o magistrado que dirige o inquérito estará submetido ao poder executivo”. A consequência desta reforma será o reforço dos poderes do ministério público e da polícia e o fim anunciado dos “casos político financeiros”. Vide Le Monde de 10 de Janeiro de 2009. A ex-juíza Eva Joly sabe do que fala; ela tomou posições semelhantes.

(15) Recordemos as asserções de Michel Rocard, proferidas no ponto mais alto da crise: “O que choca é o silêncio da ciência. Os grandes economistas calam-se. Os políticos só falam de finanças. Não têm a coragem de pôr os nomes aos bois. A verdade é que disfarçar empréstimos apodrecidos, graças à titularização, a outros que se metem no mesmo saco, como fizeram os bancos, é um roubo. As precauções de vocabulário são vergonhosas. Nomear correctamente as coisas permite aplicar correctamente as sanções. Continuamos a ser demasiadamente reverentes em relação à indústria da finança e à indústria intelectual da ciência financeira. Há professores de matemática que ensinam aos seus alunos a forma de dar golpes na Bolsa. Aquilo que fazem releva, sem que eles o saibam, do crime contra a humanidade” (cf. Le Monde de 1 de Novembro de 2008).

(16) Cf. “Testimony of Dr. Alan Greenspan”, Committee of Government Oversight and Reform, 23 de Outubro 2008.

(17) Toda a obra de Sade que irei citar é consultável na Internet. Após cada citação, indicarei o título da obra e o capítulo.

(18) Sobre a natureza celerada de Sade – definida como o facto de obedecer sem reservas ao imperativo Goza! – leiam-se os notáveis trabalhos de Philippe Mengue, L’Ordre Sadien, Loi et narration dans la philosophie de Sade, Kimé, Pris, 1996.

(19) Todavia, hoje, já sabemos alguma coisa. Dado que a crise arruinou alguns Durcet do nosso tempo, acontece por vezes que estes, ao se verem subitamente nus, comecem a contar coisas. Podem ler-se, por exemplo, as aventuras edificantes do “trader” arrependido Jordan Bellfort (Le Loup de Wall Street, Max Milo, Paris, 2008) que, à frente da sociedade bolsista Sttaton Oakmont, conseguiu ganhar até 1000 dólares por minuto. Compreende-se que as luxuosas propriedades rigorosamente vigiadas, os iates, os helicópteros, os jactos privados, as prostitutas e as drogas fizeram parte deste universo quotidiano de uma parte significativa do mundo da alta finança, no qual evoluía, e que abrangia, segundo ele, até 20% dos actores do sector. Note-se que os direitos de adaptação cinematográfica deste livro acabam de ser comprados por Martin Scorcese. Idênticos relentos sadeanos emanam das fotos provenientes da luxuosa vila de Berlusconi na Sardenha, apresentadas no muito sério quotidiano madrileno El Pais (4 de Junho 2009). Elas teriam sido tiradas no decurso de “festas” que tinham lugar num “ambiente desinibido” para o qual eram recrutadas escort girls (prostitutas) por vezes menores.

(20) Neste prólogo, limitar-nos-emos à conversão mútua da libido sentiendi e da libido dominandi. Abordaremos na primeira parte a que se refere à libido sciendi.

(21) Lacan, D’un Autre à l’autre, Le Séminaire, livre XVI (1968-69) Seuil, Paris, 2006.

(22) E. Kant, Fondements de la métaphysique des mœurs, (1875), Garnier-Flammarion, Paris, p.116.

(23) Annie Le Brun, Soudain un bloc d’abîme, Sade, Pauvert, Paris, 1968, p.35.

(24) O que se entende perfeitamente bem, por exemplo, quando Freud escreve: “As relações entre coisas aparentemente tão díspares como o interesse pelo dinheiro e a defecação manifestam-se profusamente.” “Sendo o excremento o seu primeiro presente, a criança transfere naturalmente o seu interesse pela matéria nova que se apresenta na sua vida como a mais importante dádiva.” “O interesse centrado sobre o excremento transfere-se em interesse por um presente e, depois, pelo dinheiro”. Sigmund Freud, citações extraídas da La Vie Sexuelle, PUF, Paris, 2002 e de Névrose, psycose et perversion, PUF, Paris, 2002.

(25) Nota do Tradutor: trata-se da adaptação francesa da expressão inglesa “people” que, neste contexto, designa a gente colunável, da alta.

(26) Nota do Tradutor: palavra que é um anagrama de “racaille” (escumalha), com a qual Sarkozy apodou a juventude rebelde dos bairros da periferia e que é agora usada ironicamente pelo pessoal das chamadas “cités” para de autodesignar.

(27) Entrevista de Tim Walker no jornal Le Monde de 26 de Julho de 2008.

(28) Há outras publicidades de estética igualmente sadeana. Por exemplo, as dos fotógrafos Steven Meisel ou Terry Richardson, entre outros.

(29) Note-se que a agência de publicidade Saatchi & Saatchi ganhou o Grande Prémio “Estratégias de marketing para jovens 2008 – Televisão” por este anúncio e outros do mesmo jaez.

(30) Nota do Tradutor: “isto” é uma tradução do francês “ça” o que representa uma alusão directa ao id freudiano.

(31) Vide o implacável comentário de Bernard Stiegler no seu livro Prendre Soin: De la jeunesse et des générations, Flammarion, Paris, 2008.

(32) Devemos o conceito de “grandes narrativas” ao filósofo Jean-François Lyotard. A queda da grandes narrativas marcava, para ele, a entrada na era pós-moderna (cf. J.F. Lyotard, La condition post-moderne, Minuit, Paris, 1979).

(33) Jean-Claude Milner explicou tudo isso muito bem num livro intitulado Le Salaire de l’ideal – La théorie des classes au XX siècle, Seuil, Paris, 1997.

(34) Num artigo notável publicado no Le Monde Diplomatique em Agosto de 1988, intitulado “Naissance de la Hyperbourgeoisie”, o sociólogo Denis Duclos definia assim esta nova classe: “A hiperburguesia privilegia um sistema de valores centrado na predação rápida”. Ela caracteriza-se por ser “anti-cultivada”. “Porquê? Porque, sendo o seu valor supremo a acção sobre capitais capazes de modificar a riqueza de continente inteiros, a hiperclasse funcional recusa tudo aquilo que possa travar a mudança dos valores atribuídos pelos humanos aos seus objectos (…). Ela cultiva um fascínio selvagem pelas formas ostentatórias da dominação como único valor: ter maior do que o vizinho, mais visível, mais bem protegido, infinitamente mais caro, etc. Quer dizer que tudo será selvagem no reino desta hiperclasse? Não: ela quer-se humanista, universalista e multirracial. Ela arvora bons sentimentos e extrema generosidade para com o exotismo ameaçado, desde os Yanomanis até aos Pigmeus. Ela pretende ter ultrapassado a questão étnica”. Fá-lo, “apoiando-se sobre o repugnante gosto pela acumulação e, em simultâneo, sobre o frenesim lúdico de abolir os preciosos adquiridos do otium, essa liberdade política e cultivada de toda a classe dirigente civilizada”.

(35) O tema da proletarização do consumidor está na ordem do dia desde os trabalhos do filósofo Jean Baudrillard (La Societé de consommation, Gallimard, Paris, 1970) do historiador e sociólogo norte-americano Chistopher Lash (La Culture du narcisisme, Robert Laffont 1979, Flammarion, Paris, 2006) e do sociólogo norte-americano George Ritzer (La macdonaldisation de la societé, 1993, Alban Michel, Paris, 1998). A questão foi recentemente retomada e levada a novas consequências por Bernard Stiegler, em Mécreance et Discrédit, 1, 2, e 3, Galillé, Paris, 2004, 2005.

(36) Cf. Dany-Robert Dufour, On achève bien les hommes, Denoël, Paris, 2005, capítulo II: «Edification du grand Sujet royal».

(37) Ibidem, p.170 e seguintes.

(38) Um índice recente vai nesse sentido: a vitória e a recondução nas eleições europeias de 2009, em plena crise financeira, das forças liberais que a desencadearam. O que motivou que Michel Rocard, num artigo lúcido e corajoso, tivesse escrito o seguinte: “os eleitores europeus (pelo menos aqueles que votaram) mostraram a sua dedicação ao modelo do capitalismo financiarizado. A esperança do ganho bolsista, e da fortuna, tornou-se demasiado aliciante.” (cf. Le Monde de 6 de Julho de 2009, “Les Européens ont voté pour que la crise continue”).

(39) Esta noção orwelliana reposta em lugar de destaque pelos trabalhos de Jean-Claude Micheá foi recentemente retomada com muito cuidado por Bruce Bégout, De la décence ordinaire. Court essai sur une idée fondamentale de la pensée politique de Georges Orwell, Allia, Paris, 2008.

(40) “Vítima”, na novilíngua sadeana dos jovens delinquentes, já não designa quem carece de socorro, mas aqueles cujos danos infligidos os fazem já rejubilar por antecipação. O jornalista Luc Bronner tinha revelado este traço na sua reportagem sobre os assaltos feitos por estes jovens marginais contra os alunos de liceu que então de manifestavam nas ruas de Paris (cf. Le Monde, 16 de Março 2005).

(41) Uma nova etapa da escalada porno teve lugar, neste domínio, com o filme In the bed with Madona (1991) amplamente difundido. Nele se assiste às evoluções da cantora no meio da sua equipa artística. Passam todo o tempo a lançar-se mutuamente insultos porcos de meninos de liceu que os fazem morrer de riso. É neste ambiente que, entre outros momento de audácia, vê-se a cantora empunhar uma garrafa e mostrar com uma grande dose de aplicação como é que pratica o Blow-job (fellatio).

(42) O inferno da Biblioteca Nacional existe realmente: é uma colecção de obras, constituída no início do século XIX, que agrupava as obras susceptíveis de ofender o pudor dos leitores. Era conhecida pelo prefixo da sua referência: ENFER.

(43) Afirmar que o Divino Marquês passou metade da sua vida na prisão por alguns pequenos delitos é hoje moeda corrente. Pode inclusivamente ouvir-se isso vindo da boca de alguns psicanalistas “esclarecidos”. Mesmo Elisabeth Roudinesco, historiadora da psicanálise, disse coisas dessas numa festa no Brasil, em Julho de 2008, em que apresentava o seu último livro (La Part obscure de nous-mêmes, une histoire des pervers, Albin Michel, Paris, 2007). Mas, ainda há melhor: Sade seria um verdadeiro brincalhão capaz de nos fazer rir a bandeiras despregadas. Foi a posição assumida por Christine Letailheur, em 2008, numa encenação teatral de um texto de Sade La Philosophie dans le boudoir. No texto de apresentação, podemos aprender que “as personagens dissertam com ligeireza e rimos a bom rir com as suas falas”. Que contra-senso! Todos aqueles que leram Sade a sério, jamais supuseram que se pudesse rir com os seus textos.

(44) Refiro-me ao magnífico trabalho de Annie Le Brun, Soudain un Bloc d’abïme, Sade, Gallimard, Paris, 1986.

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