Etanol: meias-verdades constroem uma grande mentira

Neste domingo, a Folha de S.Paulo publicou uma matéria de Clóvis Rossi, bastante representativa da disputa de idéias que temos pela frente. Clóvis Rossi está cobrindo a viagem de Lula à “Cúpula da Fome” em Roma, onde ele vai defender o etanol brasileiro frente às críticas aos agrocombustíveis.

A matéria, que reproduzimos abaixo, foi editada em duas partes (invertemos a ordem para destacar o mais importante neste momento – a constatação da gravidade da crise). Na segunda, baseada na entrevista do representante brasileiro na FAO, há um reconhecimento da escala dos preços dos produtos agrícolas e de como isso é uma ameaça imediata à vida de 850 milhões de pessoas que passam fome no mundo, além de uma carga pesada para outros quatro bilhões de pobres no mundo.

Além disso, há uma redistribuição dos custos entre os setores da economia mundial, que resultará em uma inflação de dois dígitos este ano e – isso ele não menciona – em uma dinâmica de estagflação (estagnação e inflação). A causa de metade do aumento dos preços estaria no aumento do consumo pelo crescimento das classes médias nos países “emergentes”.

Mas o maior problema é a primeira parte, “Lula entra na guerra mundial do etanol”, onde Rossi constrói, com enormes contorcionismos de argumentação, uma defesa do etanol brasileiro de cana frente ao que ele chama de “demonização do etanol”. Reconhece que o etanol de milho produzido a partir dos incentivos dados pelo governo Bush aos “farmers” norte-americanos tem um papel de vilão. Mas afirma que o etanol de cana não. Por dois motivos. De uma parte, cria uma idéia de que a devastação na Amazônia nada tem a ver com a expansão da cana, como se a dinâmica de aumento do preço da terra e de expulsão da pecuária e da soja para o centro-oeste não pressionasse a Floresta (simplesmente cita o Ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes). De outra, afirma, erradamente, que o etanol tem um “balanço positivo em emissão de carbono”; é muito menor do que o petróleo, mas é positiva, isto é, emite mais carbono do que seqüestra no plantio.

Clóvis Rossi é um analista político bastante experiente e conhece estas informações, tanto que sempre fala pela boca de outros em todos os pontos delicados. Mas, com meias-verdades, constrói uma enorme mentira, praticamente referendando de A a Z o discurso de Lula sobre o etanol como a “revolução energética” e a oportunidade dos países pobres no século XXI.

Há uma grande unidade das elites em torno das opções atuais do governo. De um lado, a prioridade agro-exportadora. De outro, a prioridade total no terreno industrial para o setor automobilístico (para aprisionar ainda mais os brasileiros no sistema do carro privado e agravar ainda mais a qualidade de vida nas grandes metrópoles). Finalmente, a aposta recente em tornar o Brasil exportador de petróleo. Em todos os sentidos, a aposta no passado industrial do início do século XX (que Lula representa muito bem) contra a esperança em um século XXI sustentável – que exige o enfrentamento do aquecimento global e a mudança do paradigma da sociedade de consumo centrada no automóvel.

Clóvis Rossi
Fonte: Folha de S. Paulo, 1/6/2008

Preço dos alimentos atinge pico de 50 anos, diz relatório da FAO

DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA

O embaixador José Antonio Marcondes de Carvalho, representante do Brasil na FAO, diz que “crise não é palavra excessiva” para descrever a disparada de preços dos alimentos e, mais abrangentemente, a segurança alimentar no planeta.

Nem assim, no entanto, a cúpula em Roma produzirá mais que uma declaração política. Até porque não é nesse tipo de encontro que se coloca um prato de comida à mesa dos 850 milhões de pessoas que passam fome no mundo ou se põe um freio ao aumento dos preços.

O freio até que seria da maior conveniência: segundo documento divulgado pela FAO como base técnica para a cúpula, “nos três primeiros meses de 2008 os preços internacionais nominais [sem descontar a inflação] de todas as principais commodities alimentícias atingiram seus mais altos níveis em cerca de 50 anos”.

Os saltos são sucessivos, diz ainda o texto: em 2006, o índice de preços de 55 commodities alimentícias, elaborado pela FAO, subiu 8% sobre 2005. Em 2007, a alta foi de 24%. Nos três primeiros meses deste ano, comparados ao primeiro trimestre de 2007, deu-se a disparada para 53%.

Pior: “O que distingue o atual estado dos mercados agrícolas é a ocorrência de um salto nos preços mundiais de não apenas uns poucos [produtos] mas praticamente todas as grandes commodities de alimentação de pessoas e animais”, diz o documento. Como se já não bastasse, o texto prevê que os preços continuarão elevados mesmo que se dissipem os efeitos dos choques de curto prazo.

A revista britânica “The Economist”, que alçou a inflação a tema de sua capa em edição do mês passado, calcula que a média mundial de inflação subiu para 5,5%, “o nível mais alto desde 1999”. E prevê que dois terços da população mundial provavelmente sofrerão inflação de dois dígitos ainda neste verão (que, no hemisfério Norte, começa dentro de 20 dias).

“O elevado custo de vida aflige 1 bilhão de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza, 70% delas na África, e a outros 4 bilhões que vivem nos países mais pobres do mundo”, afirma Willie Reimer, diretor da ONG norte-americana Comida, Desastre e Recursos Materiais.

A cúpula de Roma listará os muito supostos ou reais culpados pelos altos preços da alimentação. Mas Lula está convencido de que o grande culpado é o aumento do consumo, em especial em países emergentes como China, Índia e o próprio Brasil.

Tem razão. Joachim von Braun, diretor-geral do Instituto de Pesquisa sobre Política Internacional de Alimentação, diz que o crescimento do poder de compra nesses países responde por metade dos aumentos. Na medida em que as classes médias se tornam mais afluentes, os padrões de consumo mudam, freqüentemente no sentido de uma dieta mais rica em carne e produtos lácteos, por sua vez mais intensivos no uso tanto de grãos como de água. (CR)

Lula entra na guerra mundial do etanol

Presidente vai a conferência em Roma para defender o álcool brasileiro como fonte de empregos na lavoura e como combustível limpo. Objetivo de Lula é mostrar que o produto brasileiro, ao contrário do americano, não contribui para a alta dos preços dos alimentos

CLÓVIS ROSSI,

ENVIADO ESPECIAL A ROMA

O presidente Luís Inácio Lula da Silva entra terça-feira na batalha para evitar que seja satanizado o seu projeto mais ambicioso, o que ele chama de “revolução energética” a partir do etanol.

A primeira parte da batalha se dará em Roma, durante reunião de cúpula que ganhou um longo título: “Conferência de Alto Nível sobre a Segurança Alimentar Mundial – Os Desafios da Mudança Climática e da Bioenergia”. Na prática, virou uma espécie de “Cúpula da Fome”, porque a disparada do preço de alimentos criou o “perigo iminente de fome e desnutrição para 2 bilhões de pessoas que lutam para sobreviver ante o aumento dos preços”, como diz Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial.

O que o etanol tem a ver com a fome? Em tese, nada. Mas diferentes fontes e estudos apontam o álcool combustível como um dos responsáveis pela disparada dos preços. Exemplo: estudo do Banco Mundial chega a dizer que “65% do aumento nos preços de alimentos se deve aos biocombustíveis e a fatores relacionados com o rápido aumento na demanda por rações”.

O FMI (Fundo Monetário Internacional) entrou na onda, ao dizer que a crescente produção de biocombustíveis é responsável por “parte significativa” do salto nos preços de commodities.

Por fim, o mais recente relatório, divulgado na quinta-feira em Paris, diz ter sido “decisiva” na crise alimentícia a demanda agrícola para elaboração de biocombustíveis. O estudo estende a culpa no tempo, ao dizer que um terço do aumento dos preços de alimentos nos próximos dez anos será por conta dos biocombustíveis.

A FAO (braço da ONU para alimentação e agricultura) é uma das instituições responsáveis pelo estudo e é também quem convocou o que virou “Cúpula da Fome” – e será em sua sede de Roma que Lula travará a batalha.
A demonização do etanol se deve, em grande medida, ao fato de que um deles (o etanol feito a partir do milho, caso dos Estados Unidos) é de fato um vilão. Mas o etanol de cana-de-açúcar (o brasileiro), não.

Os EUA usam o equivalente a 10% da produção mundial de milho para gerar etanol. Essa quantia equivale a duas safras brasileiras de milho e, como é óbvio, contribui para o aumento dos preços. Só no ano passado houve incremento de 37% no uso de milho para produzir etanol nos EUA.

O Brasil, ao contrário, não reduziu a produção de açúcar para fazer etanol. Nem vai, ao menos não por esse motivo, invadir a floresta amazônica para cultivos que gerem biocombustível. O ministro Reinhold Stephanes (Agricultura) afirma que o Brasil tem 90 milhões de hectares para incorporar à agricultura “sem a necessidade de derrubar nenhuma árvore na Amazônia”.

Tecnologia e capitais

A batalha de Lula, no entanto, não se limita a defender o etanol brasileiro, cujos 21,5 bilhões de litros representam 70% do mercado mundial. O Brasil exporta 3,6 bilhões.

O problema é mais abrangente: o presidente brasileiro acredita que a aliança entre a tecnologia brasileira na área, reconhecida como a melhor do mundo, e capitais dos países ricos poderia disseminar plantações destinadas a biocombustíveis nos países mais pobres da América Central, do Caribe e da África, dando-lhes “no século 21 as oportunidades de desenvolvimento que não tiveram no século 20”.

Foi com esse sentido que Lula assinou, no ano passado, memorandos de entendimento com as duas grandes potências do planeta (Estados Unidos e União Européia) em torno de parcerias estratégicas.

Depois disso, porém, começou a demonização do etanol. Se ela se consolidar no mais alto nível, como é toda conferência de cúpula, a revolução com que sonha Lula virará um pesadelo. Por isso, sua ênfase em Roma será a defesa do etanol em suas duas qualidades: como fonte de empregos na lavoura e como combustível limpo.

Em termos técnicos, o etanol tem balanço positivo em emissão de carbono, do plantio até o tanque do carro – a emissão de carbono para o plantio, para a colheita e para a produção da cana-de-açúcar e do etanol dela derivado é inferior à dos combustíveis fósseis (petróleo).

Pelas contas de Marcos Jank, presidente da Unica (União das Indústrias de Cana-de-Açúcar), a cana gera 8,3 unidades de energia renovável para cada unidade de combustível fóssil. É o melhor balanço encontrado até agora nas pesquisas. O etanol a partir do milho, de que os EUA são grandes produtores, gera apenas 1,3 unidade renovável para cada unidade fóssil.

Ganhando ou não a batalha em Roma, Lula partirá para uma segunda frente de combate, porque a reunião de cúpula do G8+5 (as oitos maiores potências e cinco grandes emergentes, entre eles o Brasil) também discutirá a inflação dos alimentos e a mudança climática. Será em julho, no Japão.

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